
Prometi há tempos voltar a escrever sobre "Die Schopfung" (A criação) do compositor Franz Joseph Haydn. Aliás, devido à quantidade de tesouros que encerra, terei que voltar ao tema algumas vezes. Sempre que me ponho a ouvir esta obra, espanta-me o facto de ser tão pouco ouvida e executada entre nós e avancei já (num post anterior) algumas prováveis razões para justificar esse facto.
"A Criação" pertence ao género do oratório que tinha atingido o seu apogeu durante o Barroco e que se encontrava em declínio em finais do século XVIII, embora Haydn já tivesse composto o "Stabat Mater" (1767), "O Regresso de Tobias" (1775) e "As Sete Últimas Palavras de Cristo" (1796).
Este género de inspiração religiosa assemelha-se à opera uma vez que utiliza solistas, coros, orquestra, mas difere desta porque não é interpretada com cenários mas sob a forma de um concerto. Esta "bidimensionalidade" um pouco estática do oratório, juntamente com a sua, habitualmente longa, extensão foram responsáveis pela ausência do género na minha estante de CDs até eu descobrir as "Paixões" de Bach e o "Stabat Mater" de Pergolesi, obras em que a música ecoa no mais profundo sentir da relação do homem com o divino e cuja enorme espiritualidade impressiona, mesmo o ouvinte não crente.
Estes foram os meus primeiros oratórios, logo seguidos dos exuberantes e cativantes de Mendelsonn e, claro os de Haydn. Estes últimos destinados a atingir mais directamente o público, abandonado o tom de recolhimento e de meditação dos antecessores.
Haydn começou a trabalhar na Criação em 1796 e terminou em Abril de 1798. É pois um Haydn no final da vida que retoma a composição de grandes obras; para além de "A Criação", comporá também "As Estações"(1801).
A obra foi estreada num concerto privado no dia 29 de abril de 1798 no salão do Palácio de Schwarzenberg em Viena, foi executada cerca de quarenta vezes nesta cidade durante a vida de Haydn e também em vários países da Europa dos quais se destaca a Inglaterra no Covent Garden em Londres em 1799 numa versão em Inglês.
"A Criação" (Die Schopfung) descreve a criação do mundo e seu libreto foi baseado em três fontes: o Gênesis, o Livro dos Salmos e no épico Paraíso Perdido de John Milton (1608-1674). Três solistas representam os anjos: Gabriel (soprano), Uriel (tenor) e Rafael (baixo), que narram e comentam os seis dias da criação.
Está dividida em três partes e, como era tradição nos oratórios, números musicais amplos (árias e coros) são geralmente precedidos de breve recitativo (passagem em que uma personagem faz um relato, comenta uma acção ou estabelece diálogo com outro protagonista fazendo avançar a acção)

A primeira parte descreve a criação da luz primordial, da Terra, dos corpos celestes, dos corpos aquáticos, da atmosfera e o nascimento das plantas, concluindo-se no final do quarto dia da criação.

A segunda parte comemora o 5º e 6º dias em que Deus cria as criaturas do mar, pássaros, animais, e por último, o homem.
Na terceira parte o cenário é o Jardim de Éden, onde Adão e Eva passeiam felizes antes do pecado original.

Os episódios de música instrumental correspondem ao que de melhor se fez em música programática: o aparecimento do sol, a criação dos vários animais, e acima de tudo na abertura, a famosa descrição do Caos antes da criação com a utilização de uma harmonia tão audaciosa que alguns especialistas a apontam como percursora das revoluções musicais do século XIX.
A obra conclui com uma fuga dupla baseada no texto "
Des Herren Ruhm, er bleibt in Ewigkeit" (A obra do senhor durará para sempre), com passagens para os solistas e uma secção final homofônica e grandiosa.
As partes do coro são de um estilo grandioso e monumental, muitas celebrando o fim de um dia particular da criação.
Haydn procurou imprimir um som bem mais grandioso que o padrão da época, tendo inclusive, logo após a estréia, adicionado novos instrumentos. Quando "A Criação" foi apresentada ao público, os músicos chegavam a 120 e o coro tinha 60 vozes!!!!
Para ilustrar escolhi como exemplo a longa secção que encerra o final do 6º dia (final da segunda parte da oratória) "Vollendet ist das große Werk" (Terminada está a gloriosa obra,).
Inicialmente parece um coro final de acção de graças para glorificar a obra de Deus no entanto, em vez de concluir, dá início a um Adagio para os sopros introduzindo um dueto sereno entre Gabriel e Uriel expressando a humildade perante o Criador. Subitamente, as cordas graves entram em uníssono "escurecendo" a harmonia e Rafael evoca momento sombrio em que Deus vira a Sua Face (notar como a orquestra evoca subtilmente o tremor perante a ausência de Deus). O trio que se segue entre os três arcanjos cita "A flauta Mágica" de Mozart entretanto já falecido (uma comovente homenagem do seu amigo e admirador) retoma o ambiente de serenidade e de esperança. Finalmente a esperada conclusão do coro num contraponto maravilhoso !!!
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Aqui está um exemplo de como os próprios artistas podem promover o seu trabalho...