segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O Andante da "Sonata Fácil" de Mozart, segundo Mitsuko Uchida

Lembro-me de ter assistido a este concerto no canal Muzzik e de ter ficado pregado ao ecrã quando Mitsuko Uchida escolheu para o encore o segundo andamento da sonata em dó maior K. 545.
Estranha escolha !!, pensei... A sonata com o cognome de "sonata facile" para um momento em que o interprete espera a ser aclamado pelo seu virtuosismo. Escolher esta simples peça ?

Esta sonata para piano, com o cognome de "sonata fácil", na realidade nada tem de fácil, como podem constatar aqueles que como eu, tentam em vão martelar algumas teclas brancas e pretas do piano para tentar extrair algo que se assemelhe a uma obra de arte, tal como o divino Mozart a concebeu para o pianoforte.



Eu diria que, quando muito, esta seria a sonata menos difícil embora eu não esteja a em condições de garantir a veracidade desta afirmação uma vez que nem sequer tentei tocar as outras (imagino simplesmente !).

É certo que o piano foi durante o séc. XIX aquele instrumento democrático que todos poderiam tocar. Vá lá... algumas peças criadas especificamente para amadores. E poucos poderiam aventurar-se nas peças reconhecidamente para virtuoses.

Actualmente, movidos por aquela febre bem intencionada de superação individual, muitos se lançam em aventuras, talvez encorajados por alguns cognomes mais ou menos enganadores... como o desta sonata.

O resultado é um verdadeiro suplício de audição para os navegadores do YOUTUBE que encontram na mesma página interpretações sublimes ao lado de implacáveis golpes de martelo nestas esculturas de cristal sonoro.

Embora eu continue a tentar tocar estas peças na intimidade da minha sala de estar, espero ter a lucidez suficiente para me manter no papel do curioso maravilhado com a beleza melódica dos seus temas e reservar a sua materialização sonora para os virtuoses que conseguem encontrar o equilíbrio perfeito dos pianos e pianíssimos, legattos e stacattos entre outros recursos expressivos que são a alma destas obras delicadíssimas.






Ainda bem que reencontrei esta gravação para poder partilhar convosco.
Para mim continua a ser a referência deste andamento (ao lado de Alfred Braendel - na minha opinião o maior interprete vivo de Mozart).
Faltam-me, no entanto, adjectivos para qualificar esta, de tão simples que soa e tão mágica... ouvi uma vez e nunca mais a esqueci....

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Concerto para quatro cravos BWV 1065

Como deve ter reparado, caro leitor, tem sido difícil manter uma certa assiduidade no Organum.
Quando o trabalho aperta apenas tenho tempo para postar umas "curtas literaturas" no Portalivros.
Não é fast-food, apenas altíssima qualidade condensada em poucas linhas (modéstia a parte... embora os poemas não sejam meus). E acho que já fiz publicidade suficiente...
Quanto ao post de hoje, apeteceu-me dar um salto de alguns séculos para regressar ao barroco. E isto a propósito de um concerto que tenho estado a ouvir nos últimos dias... uma das famosas obras de Bach: O concerto para quatro cravos, o BWV 1065.
Estranho ! Quatro cravos, quatro solistas ? Comovente, inocente e belo, incrivelmente belo… E a sua ligação ao padre ruivo: Vivaldi !

Por volta de 1730, Bach tinha transcrito uma série de desassete concertos para tecla com um objectivo puramente pedagógico. Com a sua honestidade, anotava a origem da versão
No caso deste concerto, Bach anotou o subtítulo "segundo Vivaldi"


"Pelo menos no andamento lento, a obra é assombrosa, divagando, sem tema, num nevoeiro sonoro sem equivalente. Bach, sempre atento a audácias profícuas, não se tinha enganado e parece surpreendente que nenhum comentador tenha tido a ideia de determinar aquilo que, num objecto sonoro tão estranho, provém deste "Vivaldi" desconhecido e aquilo que pertencerá ao próprio Bach. Até final do séc XVIII, (...) dicionários eminentes, eruditas histórias da música (Gerber, Orloff) limitaram-se a repetir as mesmas historietas, reduzindo a memória de Vivaldi à de um grande virtuoso um pouco excessivo. Nada melhor para precipitar o esquecimento da sua música. Dar-se-iam conta de que nada na época, nem em Bach (cujo temperamento conduzia em direcção a uma música inteiramente diferente!) nem em nenhum outro compositor, tinha qualquer semelhança com esse andamento espectral do Concerto para quatro cravos? Não, limitaram-se a concluir que partindo dum esboço insignificante, se estava perante uma experiência bizarra dum Kantor fatigado (…) Mas ninguém parece ter-se preocupado muito, talvez porque à semelhança dos Contos de Grimm ou da catedral de Colónia, Bach não podia ser senão inteiramente germânico: não tinha ele composto, quase simultaneamente, a não menos visionária Fantasia cromática ? Pelo menos aí, aqueles que iriam preparar a chegada de Wagner podiam reconhecer-se !" - Marcel Marnat

Sobre este belíssimo texto apetece-me acrescentar que muita da história da música ocidental dos periodos Barroco e Clássico (pelo menos !!!) viveu dessa tensão entre a música italiana e a germânica. Bach soube conciliar estes dois "mundos" de forma admirável.

Voltando ao concerto, é em 1850 que um musicólogo alemão descobre que o concerto para quatro cravos é uma transcrição do concerto nº10 do opus III de Vivaldi.



Nessa época o compositor veneziano era pouco conhecido e respeitado e por isso a descoberta foi desvalorizada e até esquecida. Havendo até quem procurasse inverter a verdade dos factos ao afirmar que teria sido o Padre Ruivo a transcrever a obra do Mestre !!! O que Bach diria se fosse vivo…
E a música de Vivaldi permaneceu esquecida sob a poeira dos arquivos…

Em 1905 ! Arnold Schering descobriu e estudou na Biblioteca do estado de Saxe vários manuscritos de Vivaldi e irá restituir ao veneziano, na sua "História Fundamental do Concerto" (Geschichte des Instrumentalkonzerts), o estatuto que lhe pertence, tanto no plano formal como no da invenção instrumental.

Apraz-me dizer que a maior injustiça que se pode fazer a Vivaldi é não ouvir a sua música (ainda hoje, muito da sua obra está ainda por gravar!). Nesse aspecto nada como a união de dois génios para comemorar a verdadeira grande música...

Comecemos então pela transcrição de Bach, aqui com um conjunto de interpretes de luxo: Argerich, Kissin, Levine e Pletnev.




Continuamos depois com a versão original de Vivaldi:

O concerto para quatro violinos nº 10 op. III

Nesta interpretação intervêm Pinchas Zucherman, Ivry Gitlis, Isaac Stern, Ide Haendel, Shlomo Mintz, Daniel Benyanini e a Israel Philharmonic Orchestra dirigida por Zubin Metha.

Tantos !!! Que tal tentar identificá-los ?

1º Andamento



2º Andamento (o tal "andamento espectral")






3º Andamento




Á tua memória:

Kitty (1993-2008)